Sobre a internet e a sua
influência perniciosa nas personalidades das pessoas, em suas comunicações
sociais e relacionamentos interpessoais, amorosos, etc, deixarei as minhas
impressões nas entrelinhas da narrativa. Por hora, atenho-me somente a esta
possível mudança de paradigma: transitamos do querer ter para o desejar
parecer.
Outono de 2019, dia frio e
cinzento, como manda o calendário junino. Para mim, um dia comum, mais um dia
de correria para o colégio. Mais uma vez, atrasada para o primeiro horário de
aula. A viagem é longa até o outro lado da cidade. O trajeto já soava como um
mantra em minha cabeça. Quase uma hora de viagem, mas hoje ao menos um lugar
para sentar.
Sentei-me aliviada,
imaginando o tedioso percurso sem meus fones de ouvido, que a gatinha malvada
fizera o favor de mastigar e sem internet móvel, para dar uma passeada pela “web”.
Alguns minutos depois de me
acomodar no mal cheiroso e desconfortável banco, percebi algo peculiar em minha
companheira de assento. Ela estava envolvidíssima em seu celular, como quase todos
os presentes, mas ela era de longe, a mais absorta em seu próprio mundo.
Eu realmente não sou dada a
certos inconvenientes e tampouco aprecio assuntar a vida alheia, mas naquele
dia faltaram-me os fones de ouvido e minha própria internet, obviamente fui
impelida à transgressão impertinente da curiosidade: passei a vigiar, como
vizinha fofoqueira, a vida da pobre moça.
O nome dela era Débora, “@debora.oncinha”,
era o que lia-se em seu endereço virtual. E ela, a felina, não via mais nada ao
seu redor. Parecia um fantoche sendo manipulado pelo aparelho celular.
A moça esforçava-se em
chamar atenção de alguém, talvez do próprio namorado, talvez de todo o seu
mundo virtual, talvez de alguma inimiga íntima, ou talvez, fazer-se existir
naquele universo que tanto a encantava. O fato é que ela trocava as fotos em
seus perfis, escrevia (muito mal) e apagava os seus “status”, nada a
satisfazia. P.S. Muito menos a “selfie” desfocada, tirada agora a pouco, dentro
do ônibus.
Haveria de encontrar algo
impactante. Começou a olhar os perfis dos seus contatos e lembrou-se que era
dia 12. O dia 12 de junho não é um dia comum para ser desperdiçado com qualquer
“selfie”. É o dia de ostentar em seu mundo paralelo aquela foto perfeita e provocativa
que provaria a quem duvidasse sobre os êxitos do seu feliz e venturoso amor.
A moça empertigou-se
novamente na cadeira e sorriu um sorriso insosso. Revirou os arquivos em seu
aparelho, procurando uma foto recente do casal. Não havia. Enfim, encontrou uma
antiga, ajeitadinha, que serviria ao objetivo. Novamente a saga do texto. Escreveu
e apagou a sua declaração de amor pelo menos umas cinco vezes. Que luta! Por fim,
Débora aprovou sua redação final – eu não aprovaria – e entre os tropeços de concordância
e gerundismos colossais, lá se foi a postagem do dia dos namorados.
Uma foto ensaiada,
encardida, um texto mal escrito e o toque final: a marcação! A marcação de uma
pessoa numa foto em rede social é a garantia da plateia. Bingo! A moça ensaiou
novamente o mesmo sorriso, agora com um dos cantinhos dos lábios levemente
suspenso, num ar de pretensa vitória.
Nesse ponto lembrei-me de
minha mãe e de todas as histórias que ela me contava da sua juventude, dos
namoradinhos da época e de todas as cartas trocadas, da espera ansiosa pelo
carteiro, das frases sorvidas, degustadas linha por linha, cartas lidas, relidas
e guardadas em caixinhas delicadas, como se fossem o maior e mais caro tesouro...
Opostas às cartinhas de amor
da minha mãe, são as relações nas redes sociais. Ressalte-se a frivolidade como outro
traço interessante no mundo virtual.
O nome do rapaz no mundo
paralelo era “@rodrigo_diguinho”. Imediatamente ele visualizou o seu amoroso
cartão do dia 12. Curtiu com um “joinha”, como sempre fazia em qualquer foto,
imagem, postagem. E comentou. E, ao texto de umas quinze linhas e trabalhosa
elaboração mental que Débora escrevera orgulhosamente, ele respondeu com um
beijinho, uma flor e um coração. Foi só isso. Nenhuma declaração de amor.
E assim, a vida seguiu
feliz e normal em doze de junho de 2019.
Fabiana Gusmão Rocha, 14 de
junho de 2019.