quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O LOUCO


 










A lua teimosa no céu matutino,

delírio de um solitário transeunte,

protagonista do seu próprio sonho,

dança e balbucia sons inaudíveis,

palavras esquecidas no léxico bolorento,

desconexo texto sem idioma.

Ninguém o vê em seu posto,

guardador fiel de suas quimeras...

A calçada é dura.

O inverno treme.

O vento inventa o açoite:

enrijece os músculos,

os cílios,

os dentes,

a voz.

O louco, da calçada sorri

a um bem-te-vi forasteiro

que canta a canção dos degredados

e zomba da desumana sorte

de ser só em meio a humanidade.

O sono é longo demais,

avança por intermináveis dias

nada o desperta,

permanece à deriva.

Sequer a mímica alegre

da criança que brinca

ao redor do contêiner

enquanto a sua mãe cata o sustento

e conta histórias sem final feliz...

O louco ri sonoramente

e regozija-se de sua inconsciência.

 

Fabiana Rocha, 25/08/2021.


segunda-feira, 23 de agosto de 2021

GÉRBERA













No limiar do sonho da tua pétala vermelha;

devaneio de um colibri pairando no ar.

Os raios translúcidos de um sol esquecido;

banhando-lhe a tez enrubescida de amor.

Numa tarde de ternura adormecida;

o inverno ancião fazendo corte

à primavera emprenhada em ti.

Moça ornada de verdes, tons e perfumes;

alegra-me olhar-te assim,

tão perto e cheia de encanto;

conserva teu vigor, portanto,

rainha num pequeno jardim.


Fabiana Rocha, 23/08/2021.

 

domingo, 8 de agosto de 2021

O SOL SORRI



O sol sorri

no desenho de papel.

E à noite, debaixo

da sacada do edifício,

a lua perene em néon 

cor de prata também parece sorrir.

O sol sorri

rabiscado na calçada

dura e fria.

E à noite, a mesma lua,

com o mesmo fiapo de lábio 

sorri de mim.


Fabiana Rocha, 08/08/2021.


Imagem retirada do Pinterest, "Arte de rua".


sábado, 7 de agosto de 2021

AQUILO QUE NINGUÉM VIU













Não te acompanharei 
à mesa,

à missa,

ao altar.

Não dividirei

o catre,

a farinha,

o jantar.

Não segurarei as tais flores,

vestida de branco,

não serei o seu par.

Não verás o meu ventre,

qual lua cheia, repleto de vida.

Não reclamarei as dívidas,

as dúvidas,

os cuidados,

nem lhe darei os meus.

Vagarei perdida nos sonhos.

É lá onde devo morar.

Como o derradeiro pensamento do dia;

como o primeiro raio de sol;

como o cheiro de figo maduro;

como conchinhas na beira do mar;

como a música que embalou uma década;

como as cartas de amor não escritas…

Como a curva desse riso discreto que ninguém conhece a razão.

Como o rio que alimenta o mar e as vidas ao seu redor.

Como aquilo que ninguém viu.


Fabiana Rocha, 08/08/2021.




sexta-feira, 6 de agosto de 2021

O BEM E O MAL*

















Não é teu o poema guardado,

esquecido e mofado

num 'HD' insondável e

distante de ti.

Nunca foram teus esses versos

de pés,

de risos,

de dentes,

de língua na língua,

de olhos no olhar atento

do poeta devoto 

nos limites do céu.

Jamais conhecerás a alegria incontida

no refrão ensaiado, 

riscado em papel

e inscrito na lua

de lumes desenhados

numa tarde dominical.

Esse poema em 'backup'

não é teu, nem nunca será.

Não és tu a musa sonhada,

vivida,

encarnada,

o ápice do gozo,

telúrica e etérea,

o bem e o mal.


Fabiana Rocha, 05/08/2021.

*Poema publicado na Antologia Internacional Mentes Poéticas II, da Editora Mente Aberta.


domingo, 1 de agosto de 2021

CANTIGA DE PASSARINHO*


O Universo para mim é pequeno,

não me caibo em meu desencanto.

Deus me guarde de toda grade;

das paredes do apartamento;

dos muros do condomínio;

dos limites do meu pensamento.

Deus me livre do caderno antigo;

de cantar o mesmo canto;

do poema cheio de regras

de chorar o mesmo pranto.


Fabiana Rocha, 01/08/2021.

*Poema publicado na Antologia Internacional Mentes Poéticas II, da Editora Mente Aberta.