segunda-feira, 1 de julho de 2019

MEU CORPO DÓI



Deixe-me em paz,
Meu corpo dói.
Dói as dores do mundo.
Dói o pranto sofrido.
Dói o surdo gemido
Dói.
Meu corpo dói de frio e de calor.
Dói por não viver.
Dói de abandono e de fome.
Dói pelo rosto sem nome.
Dói.
Meu corpo dói pela falta de abrigo.
Dói a dor da carne fria.
Dói a de tanto sentir.
Dói a dor de existir.
Dói.
Meu corpo é o templo
das dores que vejo
e pelas que imagino, ele dói.
Dói pela vida sofrida,
dói pela morte temida.
Deixe-me em paz,
ele dói.

Fabiana Gusmão Rocha, 1º de julho de 2019.

O CÁRCERE



Se houvesse um relógio em meus aposentos, certamente apontaria quatro horas da manhã. Quem me disse isso foi a tímida fresta de luz que teimava em acariciar minhas pálpebras.
Levantei-me meio zonzo e caminhei até a janela um tanto alta. Equilibrei-me em cima de um banquinho de madeira meio capenga, para assuntar melhor a madrugada do lado de fora.
Ainda estava escuro, mas as lavadeiras, pouco a pouco, punham suas cabecinhas alvas por cima de seus ninhos para ver o mundo. Também elas amam a luz. Também elas amam a liberdade. Quisera eu poder, como elas, voar.
Enquanto olhava o despertar das aves, pelo velho vitrô enferrujado, o pensamento vagava pela infância de um menino pobre que catava pedrinhas no riacho. Revi a primeira namoradinha de olhar doce e voz de querubim. Ah, como eu desejava ser um jovem Manet para poder pintá-la com tamanha delicadeza. Segurei mais uma vez entre meus dedos a coisa mais preciosa que conheci na vida: um lindo livro de poesias com o qual aprendi a sonhar. Ele era exuberante aos meus olhos humildes. Sua capa era de um vermelho encarnado, com o desenho de uma meia lua prateada ao meio e logo abaixo lia-se aquele nome que meus lábios mal podiam balbuciar sem tremer de emoção. Que saudade daquele livro! Que saudade de mim...
Tentei, inutilmente, entender como fui parar no cárcere. Não consegui. Um pensamento vão: as troças com os amigos de outrora, a moça deselegante que anunciava em alto e bom tom nos corredores do trabalho, a proeza do nosso casório. Ríamos muito daquilo tudo. Mas ainda assim, nada se explicava.
Cá estou eu, um detento em seu cômodo escuro. Por companhia, uns pensamentos torturantes e ele, o cárcere. Ele que me domina completamente, cerceia os meus olhares, filtra meus parcos contatos, escraviza-me as vontades, dita-me os limites do meu próprio espaço.
- Ele é quadrado, de corpo e de pensamento. Ele é mesquinho, de ações e de sentimentos. Ele é áspero de contato e de atitudes. -
E eu, que dele desdenhava, dele passei a ser. Tornei-me prisioneiro em suas grades invisíveis. Um cativo do medo. Ele vive ao meu lado a todo instante, dorme e acorda em meu leito. Estou nele, como ele em mim. E, para minha má sorte, aprendi a sonhar com a poesia, mas não tenho o ímpeto das lavadeiras. Tampouco tenho aparatos para voar.
As nuvens começaram a ficar esparsas e o sol amanhecia sem graça. Fazia frio cá dentro, mais que lá fora. As lavadeiras agora arriscavam um voo rápido e um canto gracioso. Dentro do quarto sombrio, o cárcere me chamava. Desci do banquinho manco, retornei ao meu lugar de origem e resguardei-me cá dentro de mim.

Fabiana Gusmão Rocha, 1º de julho de 2019.