quarta-feira, 29 de maio de 2019

A VIDA ÀS 17


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Alfredo caminhava a passos largos atropelando as próprias pernas, embora o corpo parecesse-lhe mais pesado do que de costume. O corpo antes alto e esguio rendia-se covardemente aos caprichos dos seus mais de quarenta anos de idade.
O moço tinha pressa, pois precisava estar em casa antes das dezessete horas para poder desfrutar dos seus quarenta e cinco minutos de vida privada e pessoal.
Às dezesseis horas e cinquenta e oito minutos, exatamente, alcançou o batente da entrada principal de sua modesta residência, carecida de uma boa reforma que os honorários não permitiam. Acariciou o cachorro serelepe, bateu os pés no tapete, como de hábito e adentrou, temporariamente, em seu mundo particular.
Há seis anos sua vida mudara completamente. Estava no meio de uma crise renal, acrescida de sua dor existencial causada pela solidão e carência, desde que sua mãezinha zelosa e carinhosa se fora, deixando-o órfão e triste. A crise renal não dava tréguas, o pobre homem vivia de consultório em consultório e às voltas com bulas e medicamentos. Foi em meio a todo esse drama que Alfredo conheceu Ana Beatriz. A moça era daquelas pessoas aconchegantes, festeiras, engraçadas; não era lá muito atraente em seus modos e feições; intelectualmente também  estava longe de agradar ao gosto apurado do solitário Alfredo, mas, mesmo assim, deu-se o inevitável rendezvous.
Ao doente, a perspectiva da cura é o objeto mais cobiçado. O remédio, na hora do sofrimento, pouco importa, é primordial sanar a dor, seja ela dos rins, seja da alma aquebrantada. O alívio pode-se chamar felicidade; o analgésico pode-se dizer amor. E foi assim, feito um analgésico, que Ana Beatriz entrou na vida do senhor Alfredo.
Mas, voltemos àquela tarde de correria. O moço teria que aproveitar o seu tempo de sobrevida em seu mundo ideal, o seu habitat recôndito, o submundo de suas aspirações mais secretas. Respirar era tudo que Alfredo desejava. Puxar o ar com profundidade e inspirar, com ele, os próprios sonhos, reacendendo, assim, um brilho especial no olhar. Algo como conversar com pessoas inteligentes e afins, por exemplo, serviria. Algo como vir à tona, por uns míseros minutos.
Alfredo correu, serviu-se de um café bem forte e sem açúcar, revirou suas lembranças, sorveu o café, enquanto este se adocicava, como que por encanto; escutou suas canções prediletas, conversou com amigos invisíveis, pois os reais ele havia afugentado fazia algum tempo... Tudo isso ele fez freneticamente, num gozo existencial, enquanto degustava seu inigualável café e assim, o tempo, implacávelmente bateu-lhe à porta.
Por volta das dezoito horas, feito um relógio estridente, Ana Beatriz anunciou-se com o seu vozerio esganiçado, afugentando até mesmo as aves do céu e junto com elas, os pensamentos transgressores de Alfredo. Da porta, avistava-se a figura caucasiana e exagerada, tanto nas formas quanto nos gestos. A partir dali, o moço foi forçado a retornar ao mundo real.
Enquanto Ana Beatriz repetia ao amado como fora difícil cuidar das crianças, das quais era babá e do quão árduo era o extenuante trabalho de limpar-lhes os bumbuns, Alfredo, inutilmente, tentava refugiar-se em suas lembranças. E assim foi-se mais um dia desse enlace desarmonioso em que o rapaz metera-se desastrosamente. E assim, as horas arrastaram-se noite adentro até às seis da manhã seguinte, quando o despertador, apressado, chamou-o para um novo dia igual ao outro dia, igual ao outro dia, enfim.

Fabiana Gusmão Rocha, em 29 de maio de 2019, num encontro de formação tedioso.

terça-feira, 21 de maio de 2019

QUATRO ESTAÇÕES E A CANTIGA

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Avistei o céu, o sol não via.

Dia escuro, noite fria.
Encolhi-me em mim mesma
e o inverno tremia.

Do verde, o perfume,
da mata surgia,
seus olhos não viram
e o outono seguia.

Fosse o sol, fosse a chuva,
qualquer  tarde vazia,
vi as flores murcharem,
primavera partia.

A manhã chamou pelo sol
e a noite fez-se tardia...
esperei-te, no entanto,
era o verão que ardia.

Fabiana Gusmão Rocha, 14 de maio de 2019.

PARAFRASEANDO

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Feiticeira da noite,
moça orvalhada,
luz do luar.
Poema ao nascer do dia,
riso do mundo,
brisa do mar.
Aquele vestido encarnado,
pétala ao vento,
teu  verbo é amar.
Menina, empresta-me o verso,
vira-me ao avesso,
devolva-me o ar.

Fabiana Gusmão Rocha, 21 de maio de 2019






domingo, 19 de maio de 2019

POEMA AO ENTARDECER





















Ao chegar ao fim,
a tarde se despiu.
Primeiro o sobretudo,
depois o céu se abriu.

Tingindo em ocre, o azul,
e o céu rubro se fez.
Alva, branca, nua,
sua pele, a sua tez.

Mostrou-se inteira à lua,
enquanto o sol chorava.
Sua carne, enluarada,
da janela se avistava.

E beijaram-se às escuras;
ela, a Lua; ele, o Moço.
Naquela tarde nua,
amar, o amor, que alvoroço!

Fabiana Gusmão Rocha, 14 de maio de 2019.


SILÊNCIO






















Silêncio em meu pensamento...
Silêncio no riso... Silêncio no olhar...
Silêncio em cada palavra...
Silêncio que me faz calar.

Não bastasse o silêncio cá dentro
O silêncio não declarado
Este silêncio sonegado
Silêncio do lado de fora

O lado de fora que mente o silêncio
Posto que grita no silêncio maldito
Tamanhas mentiras sem cabimento
Tamanhas falácias, desmerecimento.

Que cale-se, então, em si mesmo
E silencie verdade e doçura
E viva de toda mentira
Debalde, a vil criatura.

Fabiana Gusmão, 12 de setembro de 2016.




O VERSO


Esse verso maltratado,
Verso sem cor,
fustigado.

É um verso encardido,
curtido no tempo,
exaurido.

Esse verso renegado,
verso de amor,
mal amado...

Verso de quem quer que seja.
Que não se negue o canto, a peleja...
Verso de quem verseja.

Esse verso tem nome.
Mas, por ele não clame...
Somente chame, me chame.

Fabiana Gusmão Rocha, 02 de maio de 2017.