
Alfredo caminhava a passos
largos atropelando as próprias pernas, embora o corpo parecesse-lhe mais pesado
do que de costume. O corpo antes alto e esguio rendia-se covardemente aos
caprichos dos seus mais de quarenta anos de idade.
O moço tinha pressa, pois precisava
estar em casa antes das dezessete horas para poder desfrutar dos seus quarenta
e cinco minutos de vida privada e pessoal.
Às dezesseis horas e
cinquenta e oito minutos, exatamente, alcançou o batente da entrada principal de
sua modesta residência, carecida de uma boa reforma que os honorários não
permitiam. Acariciou o cachorro serelepe, bateu os pés no tapete, como de
hábito e adentrou, temporariamente, em seu mundo particular.
Há seis anos sua vida mudara
completamente. Estava no meio de uma crise renal, acrescida de sua dor
existencial causada pela solidão e carência, desde que sua mãezinha zelosa e
carinhosa se fora, deixando-o órfão e triste. A crise renal não dava tréguas, o
pobre homem vivia de consultório em consultório e às voltas com bulas e
medicamentos. Foi em meio a todo esse drama que Alfredo conheceu Ana Beatriz. A
moça era daquelas pessoas aconchegantes, festeiras, engraçadas; não era lá
muito atraente em seus modos e feições; intelectualmente também estava longe de agradar ao gosto apurado do
solitário Alfredo, mas, mesmo assim, deu-se o inevitável rendezvous.
Ao doente, a perspectiva da
cura é o objeto mais cobiçado. O remédio, na hora do sofrimento, pouco importa,
é primordial sanar a dor, seja ela dos rins, seja da alma aquebrantada. O
alívio pode-se chamar felicidade; o analgésico pode-se dizer amor. E foi assim,
feito um analgésico, que Ana Beatriz entrou na vida do senhor Alfredo.
Mas, voltemos àquela tarde
de correria. O moço teria que aproveitar o seu tempo de sobrevida em seu mundo
ideal, o seu habitat recôndito, o submundo de suas aspirações mais secretas.
Respirar era tudo que Alfredo desejava. Puxar o ar com profundidade e inspirar,
com ele, os próprios sonhos, reacendendo, assim, um brilho especial no olhar.
Algo como conversar com pessoas inteligentes e afins, por exemplo, serviria.
Algo como vir à tona, por uns míseros minutos.
Alfredo correu, serviu-se de
um café bem forte e sem açúcar, revirou suas lembranças, sorveu o café,
enquanto este se adocicava, como que por encanto; escutou suas canções
prediletas, conversou com amigos invisíveis, pois os reais ele havia afugentado
fazia algum tempo... Tudo isso ele fez freneticamente, num gozo existencial,
enquanto degustava seu inigualável café e assim, o tempo, implacávelmente
bateu-lhe à porta.
Por volta das dezoito horas,
feito um relógio estridente, Ana Beatriz anunciou-se com o seu vozerio
esganiçado, afugentando até mesmo as aves do céu e junto com elas, os
pensamentos transgressores de Alfredo. Da porta, avistava-se a figura
caucasiana e exagerada, tanto nas formas quanto nos gestos. A partir dali, o
moço foi forçado a retornar ao mundo real.
Enquanto Ana Beatriz repetia
ao amado como fora difícil cuidar das crianças, das quais era babá e do quão
árduo era o extenuante trabalho de limpar-lhes os bumbuns, Alfredo,
inutilmente, tentava refugiar-se em suas lembranças. E assim foi-se mais um dia
desse enlace desarmonioso em que o rapaz metera-se desastrosamente. E assim, as
horas arrastaram-se noite adentro até às seis da manhã seguinte, quando o
despertador, apressado, chamou-o para um novo dia igual ao outro dia, igual ao
outro dia, enfim.
Fabiana Gusmão Rocha, em 29
de maio de 2019, num encontro de formação tedioso.